O que habita perto da origem dificilmente abandona o Lugar.
Numa das sessões do VIII Congresso Internacional Criadores Sobre Outras Obras em abril de 2017, assisti à apresentação de Isabel Sabino: Julie Brook, naquele quarto a céu aberto. Achei interessante as circunstâncias em que a artista realiza o trabalho para obter a sua linguagem. Um assunto que me interessa particularmente. A procura de uma linguagem própria, como faz, por exemplo, Damian Tran, um designer que admiro pela sua «linguagem muito própria».
Como designer essa «linguagem, mais abstrata», que procuro apresenta-se como uma tarefa difícil. Segundo Monari «Nas crianças, o primeiro conhecimento do mundo é sensorial global, estão a conhecer o mundo com todos os sentidos, enquanto os adultos esqueceram o seu uso.» Atribuo este «esquecimento» aos consequentes anos de trabalho para a indústria que muitas vezes (demasiadas) apresenta o problema, mas também a solução. Através de exercícios de caráter mais experimental que realizei em 2016, com grafite, recortes, volumes e manchas de cor, apercebi-me que através da exaustão de horas de prática solitária, surgiam realmente «as soluções», num trabalho progressivo, no início quase inconsciente, depois consciente, durante o qual temos possibilidade de conhecer os nossos limites e aceder a uma verdadeira liberdade.
Numa das sessões do VIII Congresso Internacional Criadores Sobre Outras Obras em abril de 2017, assisti à apresentação de Isabel Sabino: Julie Brook, naquele quarto a céu aberto. Achei interessante as circunstâncias em que a artista realiza o trabalho para obter a sua linguagem. Um assunto que me interessa particularmente. A procura de uma linguagem própria, como faz, por exemplo, Damian Tran, um designer que admiro pela sua «linguagem muito própria».
Como designer essa «linguagem, mais abstrata», que procuro apresenta-se como uma tarefa difícil. Segundo Monari «Nas crianças, o primeiro conhecimento do mundo é sensorial global, estão a conhecer o mundo com todos os sentidos, enquanto os adultos esqueceram o seu uso.» Atribuo este «esquecimento» aos consequentes anos de trabalho para a indústria que muitas vezes (demasiadas) apresenta o problema, mas também a solução. Através de exercícios de caráter mais experimental que realizei em 2016, com grafite, recortes, volumes e manchas de cor, apercebi-me que através da exaustão de horas de prática solitária, surgiam realmente «as soluções», num trabalho progressivo, no início quase inconsciente, depois consciente, durante o qual temos possibilidade de conhecer os nossos limites e aceder a uma verdadeira liberdade.

Transmission de puissance – III, 2015. Damian Tran | www.damientran.com/
Isabel Sabino na sua apresentação sobre Julie Brook referiu que a artista se retirava, numa espécie de residência artística por conta própria e que sozinha, isolada durante meses adquiria toda a disponibilidade, para o seu trabalho artístico. Uma necessidade psicológica e física de se afastar propositadamente do quotidiano, que influencia e distrai dessa procura interior necessária à autenticidade, forma de assumir o seu ser no mundo, por oposição à inautenticidade, refugio na banalidade, mergulho no quotidiano, evitando perguntar pelas nossas próprias possibilidades. Uma abordagem meditativa, interiorizante, que deixa aflorar espontaneamente ao ocultar-se. «Julie Brook, habita paisagens desabitadas e remotas, criando intervenções na natureza, transitórias e temporais, feitas do tecido da própria paisagem. […] Uma necessidade fundamental no processo artístico e na sua relação com a linguagem.»
Encontrar uma linguagem é acerca de encontrar uma resposta ao meu ambiente. (Brook, 1999)
Numa entrevista à revista Aesthetica, Julie Brook refere que tem grande admiração pela relação que os artistas japoneses têm em relação ao seu processo de trabalho onde há um respeito tradicional pelo tempo como finalidade de um entendimento interior do trabalho. É necessário tempo para encontrar uma solução sustentada sem abandonar a espontaneidade. «É pois, longe, em locais a centenas de quilómetros da cidade mais próxima, que Julie desenvolve o seu trabalho essencial, com materiais que o próprio espaço natural propicia quando percorre a pé territórios selvagens […] sublimação do esforço físico da caminhada, exigente e demorada, transformando o tempo e o espaço aberto num lugar sem corpo, sem coordenadas e sem tempo.» (Sabino, 2017)
Posso então concluir que encontrar uma linguagem não acontece sem que haja disponibilidade de tempo, trabalho continuo e persistente, possibilitando libertar o lado controlador, permitindo dessa forma ouvir-se a si próprio, numa descida ao seu interior, trabalhando os medos, a perda dos limites deixando assim que a obra fale do artista.
Encontrar uma linguagem é acerca de encontrar uma resposta ao meu ambiente. (Brook, 1999)
Numa entrevista à revista Aesthetica, Julie Brook refere que tem grande admiração pela relação que os artistas japoneses têm em relação ao seu processo de trabalho onde há um respeito tradicional pelo tempo como finalidade de um entendimento interior do trabalho. É necessário tempo para encontrar uma solução sustentada sem abandonar a espontaneidade. «É pois, longe, em locais a centenas de quilómetros da cidade mais próxima, que Julie desenvolve o seu trabalho essencial, com materiais que o próprio espaço natural propicia quando percorre a pé territórios selvagens […] sublimação do esforço físico da caminhada, exigente e demorada, transformando o tempo e o espaço aberto num lugar sem corpo, sem coordenadas e sem tempo.» (Sabino, 2017)
Posso então concluir que encontrar uma linguagem não acontece sem que haja disponibilidade de tempo, trabalho continuo e persistente, possibilitando libertar o lado controlador, permitindo dessa forma ouvir-se a si próprio, numa descida ao seu interior, trabalhando os medos, a perda dos limites deixando assim que a obra fale do artista.
Sand line, Blue volcanic plates. Julie Brook | http://www.juliebrook.com/index.html

Black line on black. Julie Brook | http://www.juliebrook.com/index.html
No fim ela perder-se-á ali dentro. Essa parte controladora de si mesma irá ceder. Finalmente ela estará livre para habitar a estranheza feita do que pode acontecer no seu interior. Esse lugar onde ela pode dar expressão à sua própria linguagem. (Gonçalves, 1999)
por Ana Jorge Monteiro, publicado em 2017 no blogue telescópio da cadeira de Cultura Visual II, FBAUL.
por Ana Jorge Monteiro, publicado em 2017 no blogue telescópio da cadeira de Cultura Visual II, FBAUL.
Eu (não) estou no quadro
«A imagem deve sair da moldura.» conselho dado a Velásquez por Francisco Pacheco del Rio quando este trabalhava no seu atelier, em Sevilha e que este levou bastante a sério.
Segundo Foucault, em As Meninas de Velásquez o pintor representa-se a si próprio no atelier, a pintar as personagens que veem contemplar a infanta Margarida, rodeada de aias, de damas de honor, de cortesãos e de anões. Poderíamos acrescentar que as duas personagens que servem de modelo ao pintor não são visíveis, pelo menos diretamente, mas podem distinguir-se no espelho ao fundo da sala: o rei Filipe IV e a sua esposa Mariana de Áustria. Mas esta pintura mostra algo de original. É uma representação de uma representação clássica mas inovadora, onde o pintor se representa a olhar para o espectador. O que este observa é duplamente invisível, uma vez que não é representado no espaço do quadro e situa-se precisamente no ponto «cego». Velásquez capta o momento, o instante, longe ainda da existência da fotografia. A imaginação do espectador é orientada para o que não está representado.
Dos olhos do pintor é traçada uma linha que o espectador não pode evitar. Atravessa o quadro e alcança, fora da sua superfície, o lugar de onde o espectador olha o pintor, que o observa. Essa linha atinge o espectador e liga-o à representação da pintura. No momento em que o espectador se coloca no campo do olhar do pintor este convida-o a entrar no quadro, destinando-lhe um lugar, ao mesmo tempo privilegiado e obrigatório, sobre a superfície inacessível da tela virada. O que olha e o que é olhado trocam de lugar incessantemente. O sujeito e o objeto invertem o seu papel ao infinito. No entanto, esta linha de visibilidade envolve uma rede complexa de incertezas. O pintor olha para o espectador na medida em que este se encontra no lugar do modelo, e simultaneamente, aceita tantos modelos quantos espectadores lhe apareçam.
Segundo Lacan «o sujeito é objeto e prisioneiro na visão do Outro passando a ser alvo de análise enquanto mero objeto. “Nas profundezas do meu olho o quadro está pintado. Mas eu (não) estou no quadro.” De modo a considerar qualquer pintura, o sujeito tem que estar envolvido nela, pois sendo o “Eu” o ponto de partida, aquela não existe sem o sujeito. A visão só pode ser acedida internamente e para isso este tem que confiar na imaginação para se ver a si mesmo nela. A pintura é então o que o sujeito vê e a que tenta assimilar-se, processo em que se constitui como ecrã.»
No cinema a realidade também é inventada. Segundo Wim Wenders «Cada um vê a realidade com os seus próprios olhos» e Jean-Luc Godard aponta o caráter ilusório na imagem quando diz: «Imagem não é nada. [...] Por outro lado ela é a ligação e o surgimento de alguma coisa que se materializa.» Uma situação semelhante ocorre no cinema de Tarkovsky, em O Sacrifício por exemplo, quando este filma o diálogo de Alexander e Otto sobre o quadro A Adoração dos Magos de Leonardo Da Vinci em grande plano. Ao colocar a câmara no lugar onde estaria o quadro, Tarkovsky faz com que as personagens projetem os olhares para fora do ecrã. A posição estranha da câmara introduz um elemento da instabilidade visual, pois as personagens parecem olhar para o espectador quando examinam o quadro mas, por outro lado, o olhar deste corresponde também ao olhar do próprio quadro. A dualidade do olhar que Tarkovsky aplica nesta cena tem por finalidade acentuar o caráter dramático do diálogo. «As imagens devolvem o olhar do espectador. O olhar não pode ser pensado como unidirecional, mas antes como algo complexo.» Lacan
No cinema poético de Tarkovsky, a transmissão de carga afetiva passa pelo grande plano que o realizador utiliza várias vezes com as personagens a olhar diretamente para fora do ecrã. Além do caráter afetivo que o próprio grande plano em si carrega, é importante perceber o sentido desse olhar dirigido ao espetador. O grande plano é por si só, afeto; é o rosto e este é o grande plano, tornando-se imagem-afeção. (Deleuze)
A tela ou o ecrã medeiam e o espectador torna-se objeto de visão e deixa de permanecer na posição daquele que vê tudo, para se envolver na imagem. O espectador é integrado na representação e não na sua perspetiva exterior à imagem. Olhar para fora do ecrã não é apenas uma forma de recordar o espectador de que se trata de um filme, mas é essencialmente um meio para o integrar afetivamente no que está a ver. O espectador olha e é olhado, uma relação que se cria, uma identificação entre sujeito e o objeto através do encontro com o olhar,como objeto real.
O olhar Lacaniano dissolve a distância que separa o espectador das imagens representadas, faz com que se envolva no que vê e perca o sentido de omnipotência. A manipulação do olhar cria o espaço onde o espectador pode inserir-se na imagem, e reconhecer o seu papel no preenchimento da falta do Outro. A simbiose que se articula entre as imagens e o espectador gera um elo afetivo que facilita a compreensão de estado de espírito da personagem despertando sentimentos e memórias que atingem zonas mais ou menos profundas do inconsciente de cada espectador: imagem tornada pensamento.
A arte é alteração, deformação, interiorização, imaginação criativa, fantasia e livre arbítrio. Neste jogo, que não representa «o que vê» dá permissão a «quem olha» ver-se a si mesmo na imagem, tornando-a livre de amarras.
por Ana Jorge Monteiro, publicado em 2017 no blogue telescópio da cadeira de Cultura Visual II, FBAUL
«A imagem deve sair da moldura.» conselho dado a Velásquez por Francisco Pacheco del Rio quando este trabalhava no seu atelier, em Sevilha e que este levou bastante a sério.
Segundo Foucault, em As Meninas de Velásquez o pintor representa-se a si próprio no atelier, a pintar as personagens que veem contemplar a infanta Margarida, rodeada de aias, de damas de honor, de cortesãos e de anões. Poderíamos acrescentar que as duas personagens que servem de modelo ao pintor não são visíveis, pelo menos diretamente, mas podem distinguir-se no espelho ao fundo da sala: o rei Filipe IV e a sua esposa Mariana de Áustria. Mas esta pintura mostra algo de original. É uma representação de uma representação clássica mas inovadora, onde o pintor se representa a olhar para o espectador. O que este observa é duplamente invisível, uma vez que não é representado no espaço do quadro e situa-se precisamente no ponto «cego». Velásquez capta o momento, o instante, longe ainda da existência da fotografia. A imaginação do espectador é orientada para o que não está representado.
Dos olhos do pintor é traçada uma linha que o espectador não pode evitar. Atravessa o quadro e alcança, fora da sua superfície, o lugar de onde o espectador olha o pintor, que o observa. Essa linha atinge o espectador e liga-o à representação da pintura. No momento em que o espectador se coloca no campo do olhar do pintor este convida-o a entrar no quadro, destinando-lhe um lugar, ao mesmo tempo privilegiado e obrigatório, sobre a superfície inacessível da tela virada. O que olha e o que é olhado trocam de lugar incessantemente. O sujeito e o objeto invertem o seu papel ao infinito. No entanto, esta linha de visibilidade envolve uma rede complexa de incertezas. O pintor olha para o espectador na medida em que este se encontra no lugar do modelo, e simultaneamente, aceita tantos modelos quantos espectadores lhe apareçam.
Segundo Lacan «o sujeito é objeto e prisioneiro na visão do Outro passando a ser alvo de análise enquanto mero objeto. “Nas profundezas do meu olho o quadro está pintado. Mas eu (não) estou no quadro.” De modo a considerar qualquer pintura, o sujeito tem que estar envolvido nela, pois sendo o “Eu” o ponto de partida, aquela não existe sem o sujeito. A visão só pode ser acedida internamente e para isso este tem que confiar na imaginação para se ver a si mesmo nela. A pintura é então o que o sujeito vê e a que tenta assimilar-se, processo em que se constitui como ecrã.»
No cinema a realidade também é inventada. Segundo Wim Wenders «Cada um vê a realidade com os seus próprios olhos» e Jean-Luc Godard aponta o caráter ilusório na imagem quando diz: «Imagem não é nada. [...] Por outro lado ela é a ligação e o surgimento de alguma coisa que se materializa.» Uma situação semelhante ocorre no cinema de Tarkovsky, em O Sacrifício por exemplo, quando este filma o diálogo de Alexander e Otto sobre o quadro A Adoração dos Magos de Leonardo Da Vinci em grande plano. Ao colocar a câmara no lugar onde estaria o quadro, Tarkovsky faz com que as personagens projetem os olhares para fora do ecrã. A posição estranha da câmara introduz um elemento da instabilidade visual, pois as personagens parecem olhar para o espectador quando examinam o quadro mas, por outro lado, o olhar deste corresponde também ao olhar do próprio quadro. A dualidade do olhar que Tarkovsky aplica nesta cena tem por finalidade acentuar o caráter dramático do diálogo. «As imagens devolvem o olhar do espectador. O olhar não pode ser pensado como unidirecional, mas antes como algo complexo.» Lacan
No cinema poético de Tarkovsky, a transmissão de carga afetiva passa pelo grande plano que o realizador utiliza várias vezes com as personagens a olhar diretamente para fora do ecrã. Além do caráter afetivo que o próprio grande plano em si carrega, é importante perceber o sentido desse olhar dirigido ao espetador. O grande plano é por si só, afeto; é o rosto e este é o grande plano, tornando-se imagem-afeção. (Deleuze)
A tela ou o ecrã medeiam e o espectador torna-se objeto de visão e deixa de permanecer na posição daquele que vê tudo, para se envolver na imagem. O espectador é integrado na representação e não na sua perspetiva exterior à imagem. Olhar para fora do ecrã não é apenas uma forma de recordar o espectador de que se trata de um filme, mas é essencialmente um meio para o integrar afetivamente no que está a ver. O espectador olha e é olhado, uma relação que se cria, uma identificação entre sujeito e o objeto através do encontro com o olhar,como objeto real.
O olhar Lacaniano dissolve a distância que separa o espectador das imagens representadas, faz com que se envolva no que vê e perca o sentido de omnipotência. A manipulação do olhar cria o espaço onde o espectador pode inserir-se na imagem, e reconhecer o seu papel no preenchimento da falta do Outro. A simbiose que se articula entre as imagens e o espectador gera um elo afetivo que facilita a compreensão de estado de espírito da personagem despertando sentimentos e memórias que atingem zonas mais ou menos profundas do inconsciente de cada espectador: imagem tornada pensamento.
A arte é alteração, deformação, interiorização, imaginação criativa, fantasia e livre arbítrio. Neste jogo, que não representa «o que vê» dá permissão a «quem olha» ver-se a si mesmo na imagem, tornando-a livre de amarras.
por Ana Jorge Monteiro, publicado em 2017 no blogue telescópio da cadeira de Cultura Visual II, FBAUL
Que o filme comece quando saírem da sala
Durante as aulas de Cultura Visual lembrei-me frequentemente de cenas dos filmes O Meu Tio e Playtime — Vida Moderna, ambos de Jacques Tati, principalmente durante a leitura de O Novo Citröen de Roland Barthes. Vi estes filmes, no cinema Nimas e resolvi voltar a rever Playtime — Vida Moderna no âmbito deste trabalho. O DVD inclui um documentário sobre o filme onde Tati afirma: «Quero que o filme comece quando saírem da sala». O filme teve o efeito pretendido e lembro-me de ter ficado a olhar para a cidade e para o trânsito com um sentimento misto entre crítica e fascínio, tal como a emblemática personagem de Hulot, «o eterno peão fascinado do quotidiano».
Os anos cinquenta foram considerados «anos dourados», de transição entre o período das guerras da primeira metade do século XX. Nesta época dão-se inúmeros avanços na tecnologia devido às necessidades da guerra. Uma novidade que teve enorme repercussão ao nível social e cultural foi o aparecimento e desenvolvimento da televisão. Uma revolução aconteceu ao nível da comunicação através da propaganda que potenciava ao máximo a sociedade de consumo — o indivíduo substituído pelo consumidor. O American Way of Life era suportado pelo uso de eletrodomésticos, de automóveis, de cosméticos e de invenções extravagantes. Em oposição ao período da Guerra, o capitalismo mostrava o ideal de conforto. Surgem imagens de mulheres com aspiradores, máquinas de lavar, tudo para lhes «facilitar» a vida na sua «aparente» felicidade. A ideia de glamour pelo consumo.
Todos os seis filmes de Tati tratam das mudanças impressionantes que ocorreram no pós-guerra entre os anos de 1945 e 1975, na arquitetura, no aumento de uma sociedade de lazer e na democratização do automóvel. Para o seu filme Playtime, Tati construiu Tativille – a cidade futuro. Os edifícios de Tativille são um canvas abstrato onde se movem as personagens mas também são um olhar tímido sob os arranha-céus já existentes em Manhattan. Playtime questiona a uniformização.
Um grupo de turistas americanas chega a Paris para uma viagem organizada, de uma cidade europeia por dia. A viagem organizada inclui uma visita à exposição Casa Ideal e um jantar no novíssimo restaurante Royal Garden. Da mesma forma, Playtime passa-se no espaço temporal de um dia, em duas fases distintas. A primeira, muito clean num mundo mecanizado de personagens tipo. Na «empresa moderna» Hulot faz figura de intruso encerrado numa sala de espera cuja transparência não passa de um logro, uma vez que os vidros refletem uma realidade que ele não alcança e onde ele não passa despercebido. Os escritórios «labirinto», a redução dos indivíduos a objetos, sujeitos à repetição, Tati filma na primeira parte do filme, os seres humanos como se fossem autómatos — indivíduos fungíveis, meros exemplares. A mecanização de gestos e modos de andar não se dissociam da arquitetura, que segundo Tati «foi concebida para nos pôr em sentido».
«A produção material e as relações materiais dos indivíduos, transformam o seu pensamento e os produtos desse pensamento». A exploração sem precedentes do indivíduo pelo indivíduo.
Quanto mais o filme avança mais as pessoas dançam e se põem a girar abandonando as linhas retas do início do filme. A lenta transformação da linha reta em curva corresponde à passagem do vazio ao cheio e do frio ao quente. O Royal Garden, local fútil e de arquitetura pouco funcional após a intervenção desajeitada de Hulot, que destrói o decor, o espaço abre-se a quem quiser entrar. O redesenhar do espaço à medida do indivíduo estabelece o Royal Garden como um local de acolhimento suscetível de emanar, por fim, algum calor e humanidade. Local escolhido por Tati para a sua feliz «revolução». A segregação social esmorece, através da dança e da música. A ideia de hierarquia torna-se estranha e o caos domina a composição de planos dando ao espectador a possibilidade de sonhar. A porta já não filtra os «indesejáveis» que agora podem entrar no lugar de prazer até agora interdito e Hulot acaba por ser convidado a ser o arquiteto do espaço.
O ritmo abranda. A noite dá lugar ao dia. O galo canta a anunciar a manhã de uma cidade que sai do anonimato de aço juntamente com uma identidade francesa em algumas piadas e símbolos e uma sugestão de Montmartre, bairro popular e artista. As últimas cenas do filme, mostram-nos as turistas americanas, já de partida, dentro do autocarro numa rotunda de ações mecanizadas. Uma rapariga balouça alegremente no assento traseiro de uma moto e também o Citroën 2 CV exibe os seus amortecedores ao mesmo ritmo, mostrando o conforto tão apreciado na época. O círculo de viaturas para e arranca a um ritmo sincronizado: como um carrossel. Os oohs!e aahs! das turistas americanas, sincronizados com a experiência do espetador, mostram os pequenos prazeres da vida moderna. Playtime aborda a vida moderna não do ponto de vista do trabalho ou atividade como fez Chaplin, mas como o título do filme indica, do tempo de lazer daquela nova sociedade.
por Ana Jorge Monteiro, publicado em 2016 no blogue microscopio da cadeira de Cultura Visual I, FBAUL.
Durante as aulas de Cultura Visual lembrei-me frequentemente de cenas dos filmes O Meu Tio e Playtime — Vida Moderna, ambos de Jacques Tati, principalmente durante a leitura de O Novo Citröen de Roland Barthes. Vi estes filmes, no cinema Nimas e resolvi voltar a rever Playtime — Vida Moderna no âmbito deste trabalho. O DVD inclui um documentário sobre o filme onde Tati afirma: «Quero que o filme comece quando saírem da sala». O filme teve o efeito pretendido e lembro-me de ter ficado a olhar para a cidade e para o trânsito com um sentimento misto entre crítica e fascínio, tal como a emblemática personagem de Hulot, «o eterno peão fascinado do quotidiano».
Os anos cinquenta foram considerados «anos dourados», de transição entre o período das guerras da primeira metade do século XX. Nesta época dão-se inúmeros avanços na tecnologia devido às necessidades da guerra. Uma novidade que teve enorme repercussão ao nível social e cultural foi o aparecimento e desenvolvimento da televisão. Uma revolução aconteceu ao nível da comunicação através da propaganda que potenciava ao máximo a sociedade de consumo — o indivíduo substituído pelo consumidor. O American Way of Life era suportado pelo uso de eletrodomésticos, de automóveis, de cosméticos e de invenções extravagantes. Em oposição ao período da Guerra, o capitalismo mostrava o ideal de conforto. Surgem imagens de mulheres com aspiradores, máquinas de lavar, tudo para lhes «facilitar» a vida na sua «aparente» felicidade. A ideia de glamour pelo consumo.
Todos os seis filmes de Tati tratam das mudanças impressionantes que ocorreram no pós-guerra entre os anos de 1945 e 1975, na arquitetura, no aumento de uma sociedade de lazer e na democratização do automóvel. Para o seu filme Playtime, Tati construiu Tativille – a cidade futuro. Os edifícios de Tativille são um canvas abstrato onde se movem as personagens mas também são um olhar tímido sob os arranha-céus já existentes em Manhattan. Playtime questiona a uniformização.
Um grupo de turistas americanas chega a Paris para uma viagem organizada, de uma cidade europeia por dia. A viagem organizada inclui uma visita à exposição Casa Ideal e um jantar no novíssimo restaurante Royal Garden. Da mesma forma, Playtime passa-se no espaço temporal de um dia, em duas fases distintas. A primeira, muito clean num mundo mecanizado de personagens tipo. Na «empresa moderna» Hulot faz figura de intruso encerrado numa sala de espera cuja transparência não passa de um logro, uma vez que os vidros refletem uma realidade que ele não alcança e onde ele não passa despercebido. Os escritórios «labirinto», a redução dos indivíduos a objetos, sujeitos à repetição, Tati filma na primeira parte do filme, os seres humanos como se fossem autómatos — indivíduos fungíveis, meros exemplares. A mecanização de gestos e modos de andar não se dissociam da arquitetura, que segundo Tati «foi concebida para nos pôr em sentido».
«A produção material e as relações materiais dos indivíduos, transformam o seu pensamento e os produtos desse pensamento». A exploração sem precedentes do indivíduo pelo indivíduo.
Quanto mais o filme avança mais as pessoas dançam e se põem a girar abandonando as linhas retas do início do filme. A lenta transformação da linha reta em curva corresponde à passagem do vazio ao cheio e do frio ao quente. O Royal Garden, local fútil e de arquitetura pouco funcional após a intervenção desajeitada de Hulot, que destrói o decor, o espaço abre-se a quem quiser entrar. O redesenhar do espaço à medida do indivíduo estabelece o Royal Garden como um local de acolhimento suscetível de emanar, por fim, algum calor e humanidade. Local escolhido por Tati para a sua feliz «revolução». A segregação social esmorece, através da dança e da música. A ideia de hierarquia torna-se estranha e o caos domina a composição de planos dando ao espectador a possibilidade de sonhar. A porta já não filtra os «indesejáveis» que agora podem entrar no lugar de prazer até agora interdito e Hulot acaba por ser convidado a ser o arquiteto do espaço.
O ritmo abranda. A noite dá lugar ao dia. O galo canta a anunciar a manhã de uma cidade que sai do anonimato de aço juntamente com uma identidade francesa em algumas piadas e símbolos e uma sugestão de Montmartre, bairro popular e artista. As últimas cenas do filme, mostram-nos as turistas americanas, já de partida, dentro do autocarro numa rotunda de ações mecanizadas. Uma rapariga balouça alegremente no assento traseiro de uma moto e também o Citroën 2 CV exibe os seus amortecedores ao mesmo ritmo, mostrando o conforto tão apreciado na época. O círculo de viaturas para e arranca a um ritmo sincronizado: como um carrossel. Os oohs!e aahs! das turistas americanas, sincronizados com a experiência do espetador, mostram os pequenos prazeres da vida moderna. Playtime aborda a vida moderna não do ponto de vista do trabalho ou atividade como fez Chaplin, mas como o título do filme indica, do tempo de lazer daquela nova sociedade.
por Ana Jorge Monteiro, publicado em 2016 no blogue microscopio da cadeira de Cultura Visual I, FBAUL.
